segunda-feira, 4 de julho de 2011

"Do amor quase negado" - Cado Selbach



Cícero sairá hoje à tarde para passear com seu pai. São dez horas e ele
já está pronto. Demorou decidindo se vestiria a camisa de seu time, já
que o pai torce para outro. Tem onze anos; mas já se ocupa de gerenciar a
angústia que sente quando imagina poder decepcionar o cara a quem tanto
ama, mas nem sempre entende.

Do outro lado da cidade o pai
acorda atrasado e precisa de dez minutos pra sintonizar com a idéia de
atravessar a cidade para encontrar Cícero. Ama seu filho de um modo que
chega a desconfortá-lo. Não costuma ser fácil pra esse cara administrar
sentimentos que ponham em risco o pragmatismo com que conduz sua vida. E
em função da profusão de sentimentos desordenados e conflitantes que
vêem à tona quando se envolve com seu menino, foge de vez em quando.

São
onze horas. Cícero veste, então, a camisa de seu time. E ensaia um
sorriso que neutralize algum possível mau-humor que isso possa produzir
em seu pai. Guarda no bolso da bermuda, em dobradura amassada, duas
redações elogiadas por sua professora e as lê em voz alta, duas vezes
cada, para encontrar a entonação e dinâmica ideais para mostrá-las ao
voraz leitor que tanto lhe estimulava a escrever.

O Pai começa a
enumerar silenciosamente todas as possibilidades de programas para a
tarde que se aproxima. E deseja estar feliz e disposto para encarar
qualquer uma delas. Seus devaneios os levam desde o jardim botânico, até
uma esposição de arte contemporânea. Mas ainda há alguma sensibilidade e
a decisão de delegar a cícero o direito de escolher a peregrinação do
dia.

Ao meio-dia, cícero anda pela sala e imita gestos que usará
para contar ao pai dos dois gols que fizera no campeonato do último fim
de semana. Já os havia detalhado ao telefone. Mas sem o aparato cênico,
próprio de seu jeito expressivo de gestos eloqüentes. E pensa em
sugerir voltar pra casa só na segunda-feira. E não ao final do domingo,
como sempre faziam.


O pai já está pronto e também circula pela casa em movimentos idênticos
aos do garoto, que tanto parece consigo. E não conseguira se organizar
para terminar um relatório de trabalho que precisaria entregar na segunda.
Pensa em fazê-lo em algum momento em que Cícero estiver "engolido" pelo
computador. Ainda não decidiu se lhe apresentará a nova namorada. Não
exatamente uma "Super Nanny" em sua relação com as crianças que por
descuido, ou falta de opção, convivam algum tempo com ela.

Treze
horas. Agora falta só uma hora para a chegada de seu pai. Aumenta a
excitação e a vontade de que ao vê-lo o tempo congele e jamais se percam
um do outro. A bola de futebol de salão já está sob seu braço esquerdo.
E o olho claro brilha com a intensidade dos melhores encontros. Sua mãe
está na cozinha falando qualquer coisa sobre filtro-solar e a
necessária reposição de duas em duas horas.

O Pai sai de casa com
a ansiedade que sempre lhe acompanha nessas horas e liga o rádio numa
estação qualquer. E num desses eventos que os seguidores de Jung
entenderiam como sincronicidade, ouve Nando Reis cantar: "Dos meus
filhos eu sinto saudade e tenho medo que eles achem que eu não sinto a
falta deles... como eu acho que eles sentem de mim". E chora como se
esperasse o próprio pai em vão... durante longas horas... até constatar
que ele não viria. E tomado por uma emoção com a qual não sabe lidar,
disca o número da casa do filho para lhe falar de um imprevisto
inventado
e transferir a visita para o próximo fim de semana.


Treze horas e quarenta e cinco. O menino discute com a mãe que insiste
em dizer que não é necessário esperar Marcelo no Portão. Aproveita para
desqualificá-lo um pouco, falando de seus habituais atrasos e ocasionais
faltas. O menino diz que, dessa vez, tem certeza de que ele não se
atrasará. O telefone toca... e vê tratar-se de uma ligação do pai. Já
deve ter chegado, pensa. Tomara que não esteja ligando pra dizer que se
atrasará.

O pai, já com o discurso decorado, ouve o alô
entusiasmado do filho e responde num impulso inesperado: "- só um momento filho...
tenho que desligar! mais dois minutinhos ligo de novo". E o choro que
lhe toma e varre todos os salões e quartos secretos de sua alma, resolve
mudar o rumo da história e o faz rediscar para a casa do filho:
"Cícero... o pai só ligou pra dizer que já está chegando. mais cinco
minutinhos tô aí.Bj. Te amo muito... e olha que andei treinando!"

E vivem um de seus
melhores finais de semana. E o amor que sentem um pelo outro encontra
cada vez menos barreiras. E o pai aprende a negociar com seus medos e
limites e jura para si jamais deixá-lo esperando.

Cado Selbach.

3 comentários:

TATIANA BRAVO bravotati@gmail.com disse...

Lindo Cado! Parabéns Beijos

Lúcia disse...

Querido Cado, nunca vivi essa experiência e senti uma emoção tão forte ao ler esse belo texto. Quantos pais hoje em dia sentem essa angústia. Que bom se pudessem ler esse texto tão tocante.

CADO - MAPA DOS MEUS DIAS disse...

Obrigado, Tatiana... muito feliz em te ver no meu blog.

Oi Lúcia... de fato este texto foi escrito sob muita comoção. feliz que tenha encontrado sentido em tua leitura. grande abraço e obrigado.