sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sem nome (só corpo) - cado selbach

SEM NOME (Só Corpo)

Tiro minha roupa pra você
Como quem retira a pele
De seus desejos secretos
Como quem se despe de vergonhas
E exibe-se no palco das alcovas

Lambo tua boca de silêncios
Com minha língua de palavras repetidas
E ao percorrer teu corpo tão oblíquo
Em malabarismos sinuosos
Derramo minha saliva quase doce
Na taça de tuas taras de hoje em dia

E às mãos?
Entrego plena autonomia
Pra que te explorem feito sertanista
De velha canção de descobertas

E após mapear teus becos e esquinas
Encaixo-me em lugares de prazeres
E rio-choro-imploro-e então derramo...

Palavras renovadas de sentido...
Em teus ouvidos mal-acostumados
E um tanto quanto esquivo as minhas palavras

Que penetram
Feito brisa
Feito faca

Rasgando teu escudo de temores
E essa tua arrogância de menino.



Cado Selbach

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Calla-me - Cado Selbach

CALLA-ME

Ouço o barulho da taça espalhando-se no chão da sala
E ao olhar meus pés descalços vejo o sangue generoso

E quase esqueço

- cansado -


que tua sala de hoje
Fica em bairro bem distante
De qualquer lugarque eu pise

A taça quebrada em golpe
Contra a porta da saída
Quebrou-se na tua ida
Pra um mundo em que não caibo

E o vermelho que me cobre
Já viscoso entre meus dedos
De mãos e pés desnudado

Jorra de meus pulsos frágeis!
E do coração selvagem

E é então que alucino
E uso a tinta hemoglobina
Pra desenhar na parede
O teu rosto estilhaçado

E mesmo o teto singelo
Faz-se capela sistína
Pra minha obra de arte
Que chamo... sem entusiasmo:

"Da destruição do amor"

E não sei porque "la mamma"
Aparece mesmo morta
Pra resgatar o meu corpo
Que já quase entra no embalo
Da dança deste abandono

"La mamma morta m'hanno
alla porta della stanza mia"

Acordo-me, então, de súbito
Do pesadelo macabro
Onde Callas faz a trilha
Pra minha dança suicída

E decido que no sábado
Não ouviremos ópera

E talvez nos ocupemos
Da idéia sempre adiada

De finalmente cobrir
A parede desbotada
Do vermelho já escolhido

E estocado a tantos anos!


Cado Selbach

terça-feira, 26 de julho de 2011

exconjuro - Cado Selbach

Exconjuro

Hoje revogarei os meus contratos de afeto
Inaugurando a estação dos corações partidos

E caminhos bifurcados pela dança das vaidades

Dir-te-ei dos rancores e do caldo já entornado
Em minha piscina secreta de almas fantasmorizadas
Pra poupar-me do trabalho do banimento bem vindo
Dos desejos ou repulsas que me cercam entusiasmados

Privar-me-ei de rancores e do desdém que carrego
Por espectros urbanos feito gente mal amada
Entendendo-os como seres enrodilhados no drama
De não protagonizarem qualquer cena que requeira
tons de sensibilidade mesmo metamorfoseada

Almas pagãs e perdidas na cidade desvairada
Mixadas a personagens de romances já datados
De velhas encarquilhadas e corações de pedra
E bolsos abarrotados de miséria embolorada

E seguirei o meu curso de poeta impertinente
Empilhando minhas palavras em colunas de sentidos
Para quem sabe salvar-me do que já havia esquecido:

A tristeza contagia, sobretudo se negada...
Ainda mais amalgamada a rancores bem antigos.


Cado Selbach

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Do escrever - Cado Selbach

DO ESCREVER

Escrevo para salvar-me de mim mesmo
E desnudar despudorado, a pele de meus segredos
Escondidos entre imagens e metáforas confusas
Que juntas tonalizam meu dossiê de angústia e medos.

E esse medo recorrente de perder-me entre palavras
E deixar que transpareçam meus segredos mais contidos
Atrapalha o espontâneo fluxo dos pensamentos
E me faz assim - constricto - titubeante e recolhido

Mas não desisto tão fácil de versejar minha vida
Rasgando a fibra do tempo a contemporizar afetos
Que se espreitam entre palavras sopradas por meu eu-lírico
A acordar temas antigos de amores abortados

E por saber o quão tênue é a linha que me separa
Das cavernas abissais de meu sótão de memórias
Vou deixando transformar-me a cada verso que expulso
Até mergulhar no lago de minhas insanidades

E insano qual soldado recém voltando da guerra
Visto a alma de poeta com as sobras da memória
E escrevo minha vida qual ficção caprichada
Agarrando-me às bordas de minhas poucas verdades

Cado Selbach

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Pra que quem sabe adormeças - Cado Selbach

PRA QUE QUEM SABE ADORMEÇAS

Esse ar de desamparo que ostenta teus verdes olhos
Aciona em mim o desejo de proteger-te pra sempre
De compensar tuas perdas e de desenhar cenários
Pra que passeies teu corpo em atos de liberdade

Esse tanto de tristeza que exprime os teus gestos
Constela em mim a vontade de desenhar-te sorrisos
Pra que andes pelas ruas a desfilar gentilezas
Amparado na certeza de meu amor libertado

Essa parcela de medo que crispa teu rosto jovem
Atiça em mim o impulso de te cobrir de alegria
Pra que enchas de esperança corações transpassados
Pela flecha dos afetos de amores interditados

Essa porção generosa da raiva que há em teu  silêncio
embaralha minhas palavras de consolo e piedade
E por vezes me intimida ante a rudeza dos gestos
De esquiva e antipatia que usas sempre quando foges

Essa substância etérea de que pareces ser feito
Bloqueia todos meus gestos de tentar interpelar-te
Pra desvendar teus segredos e histórias abortadas
E enfim deitar-te em meu colo pra que

- quem sabe? -


adormeças...


Cado Selbach





































Deu pra sublimar - Cado Selbach

DEU PRA SUBLIMAR

Saguão de aeroporto
Folheando revistas
Espero que invistas

Quem sabe ficar!

Ficar bem à vista
Trocar a passagem
Me amar de passagem

Ou pra sempre ficar

Vim pra despedida
Ainda insistindo
Que voltes sorrindo teu rosto no embarque
Pro meu corpo teso... te(n)são e desejo
Lembrança de beijos e tardes no parque

Você de partida
Talvez repartido
Não me dá ouvidos
E some no ar

Sem saco pra drama...
Retorno pra cama
Lá onde escrevemos
Roteiro vulgar

E faço poema
Sublime poema
Desses de dar pena...
Pra voz embargar

Se não for sublime
Azar! vale a pena.

Cumpriu sua sina...

Deu pra sublimar!


Cado Selbach

terça-feira, 19 de julho de 2011

Obs(cenas) - Cado Selbach




OBS(CENAS)

Picho o muro de teus dogmas
Com palavras obscenas
Provocando teu tesão sempre contido
A explodir em ato de profanidade

Profano teu jardim sagrado
Com cenas roubadas de velhas histórias
De mitos atemporais e seus deuses sem limites

Umedeço teus lábios ressecados
Com a saliva e a lascívia de minha boca
Com a saliva e a luxúria de minha alma
Com a saliva e os limites...

De meu corpo

Penetro-te qual raio na clareira
E grito tua vontade represada
E gozo de teus modos recatados
E gozo de teu medo de entregar-se

E gozo...

E o gozo desce as dobras de teu corpo
Serpente fertilizando tua pele
Qual leite pra salvar-te de tua fome

E ao ver-me tão seguro em teu domínio
Entendo que se assim então me imponho

Pra esconder menino amedrontado
Do visco que fusiona nossas peles

E me faz perguntar, ouvindo Chico:
Com que pernas sigo o rumo desta estrada?

E pra não me perder em nosso enlaço
Rápido enlaço meu cavalo alado
E num delírio de homem complicado

Acordo em tuas pernas enlaçado!


Cado Selbach
Publicar postagem

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Palavra Verbo - Cado selbach

Palavra Verbo

Há um duelo permanente em mim:
Entre este que tudo diz... e o outro...
Que tudo esconde!

Um esconder-se dizendo-se
Um dizer-se ao tentar esconder
Palavras secas de sentido
Silêncios úmidos

Boca lacrada

Há um grito poema pretensioso
Pretensiosamente exposto qual poema
Mesmo sem sê-lo bem lá no fundo

Na verdade nada diz
Como bem sabes calado.
Ou talvez diga o bastante
Pra que prefiras calar-te
Ou o prefiras banido

Há palavras de morte
E arte
Palavras de grande porte
Palavras sem data
Nuas e defloradas
E outras - tão bem tratadas
A superar intenções

Palavras sentidas como corte
De sangue jorrando forte
De punhos desesperados

Palavras feitas de nada
Palavra balão de hélio

Palavras sem gravidade

E outras de tom tão grave
Que anunciam a morte
Mesmo do que mais amamos

Nessa hora... ensaiadas
Pra driblarem os horrores
De despedidas forçadas

Palavra afeto isolado
Palavra verbo
sem ato

Compulsivas... tão sem rota


Cado selbach

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Títeres - Cado Selbach


 
TÍTERES

E já não sei se é teimosia
insistir em expressar-me
Em poemas tão caducos
Que me despem assim

- aos poucos -

Mas creio que irei fazê-lo
Enquanto houver controvérsias
Entre o que sou e o que sinto

Pois na verdade, confesso
Poemas são testemunhos
De minh'alma sempre inquieta
Adornada com palavras
Repetidas mas sinceras

E mesmo quando não dizem
Deste eu que agora escreve
Ainda assim explicitam
Minhas verdades secretas
Minhas mentiras sagradas
E desejos incontidos
Que se esparramam em versos
De indisfarçável tristeza
Perpassada de alegria

...Quase sempre euforizada

- mas contida -

E em minha dualidade
Danço o ballet dos humores
Hoje tão condicionados
Ao flutuar dos amores
Que sustento entre meus braços
E revolvem minhas entranhas
Como se nelas morasse
Um Deus velho e distraído

Que brinca com seus fantoches
No circo da eternidade
Em cantos tensos e sacros
Soprados em voz pequena
A revolver meus afetos
Remixados por medos
No purgatório das culpas
Sem deixar compadecer-se
Por recalques de outros tempos
E o que de mim saboto

E é então que desconfio
Que este deus em que não creio
Em mim crê e me protege
Evitando que eu me perca
Na babel dos sentimentos
E humores multipolares
De longas tardes glaciais
Em que enrijeço  a expressão
De meu rosto sempre tenso
Pra logo mais derramar-me
Em sorrisos espontâneos

Que nascem junto com a lua 

Cado Selbach





terça-feira, 12 de julho de 2011

Marina Morena Lima - Cado Selbach

Marina Morena Lima

Há qualquer coisa de sagrado em tua voz
Qualquer coisa de profano
Qualquer coisa.

Há qualquer coisa de leveza
Qualquer coisa de grandeza
E a dose exata de dor.

- Tantas histórias de amor -

E há promessas em tua voz...

Anúncios...




Revelações...

Tanta coisa que liberta
E até algo que escraviza
Nas entranhas do teu canto

Voz que é carta de alforria
Promessa de alguma alegria

Liberdade

Transmutação!

No corpo de tua voz
Que cartografa meus desejos
Dançam luzes e sombras
Que desenterram segredos

Afinal...
Como mesmo os descobriste?


noites e dias
portos... vinhos

Acontecimentos

E lugar
pro meu silêncio
tão cheio de volume...

E pra todas minhas palavras
Tão cheias de silêncio...

Tais como essas de agora
Que escrevo enquanto te ouço...

Falando do imponderável...
Mares turquezados e navegadores

Cado Selbach

segunda-feira, 11 de julho de 2011

INVERNIZANDO - (Cado Selbach)

 

INVERNIZANDO
Recolhe-me o frio em suas entranhas
Enquanto geia sobre o parque logo em frente
Tal qual o tempo geou sobre os cabelos

E Entre edredons de tédio matutino
Eu me aconchego na cela da noite
E se misturam pernas e intenções
E pensamentos também se recolhem

Vive-se então o profundo silêncio
Do vento uivando em vidraça vedada
E porque dançam assim, tão eufóricas
As velhas árvores da madrugada?

Há quase medo do frio insidioso
E das ciladas no dobrar da esquina
E uma vontade doida e imperiosa
De acalentar desejos quase castos

É ninho a cama em que vivo agora
Da qual escapa a mão que encontra a taça
Que brinda aos corpos hoje enrodilhados
Pele aquecida - antes eriçada

Faço do frio planície pros meus passos
Que logo cedo roubarão meu corpo
Enclausurado entre vestes pesadas
Pra ver as folhas secas na estrada

A desenhar caminhos de passagem 

Cado Selbach

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Sobre o vagaroso andar de meus dias... assim que se anunciam (Cado Selbach)


Sobre o vagaroso andar de meus dias... assim que se anunciam

Sou destas pessoas que acordam algumas horas depois de abrir os olhos. Assim que aterriso nas manhãs (que às vezes começam ao meio dia) não sou exatamente eu quem conduz os próprios passos. Deixo-me meio à deriva, por um tempo, apenas contemplando o mundo que observo com particular estranhamento ao acordar.

O território dos sonhos me fascina de tal modo que me recuso a abandoná-los como resíduos arcaicos de minhas memórias. Meus sonhos são a trilha que tento percorrer nesses instantes em que, apesar de já estar na rua... o mundo lá fora pouco me interessa. Talvez por minha inegável extroversão, preciso iniciar o dia ouvindo a voz de meu inconsciente, daquilo que em mim habita mas não se submete ao meu controle.

Porém, mesmo nesta atitude de desatenção em completa sintonia com meu ego, pouco preocupado em assumir as rédeas, nunca deixo de ser transpassado pelo que vejo, pelos rostos, na maioria anônimos que dizem tão mais do que imaginam.

E num estado quase onírico, invento histórias para cada uma das pessoas que sustentam estas expressões eloquentes do que são... e, por vezes, do que não conseguiram ser. Imagino o que fazem dentro de seus carros, ônibus, caminhando apressados sabe-se lá pra onde.

É como se nesta hora todos se assemelhassem um pouco. Pelo menos na condição de estarem "de passagem", no interlúdio entre o que foram há minutos atrás e o que virão a ser nas próximas horas.

A cidade é uma selva com espécimes curiosos e vidas em extinção. Não é de alegria a expressão mais comum em cada rosto; mas de uma espécie de perplexidade diante do que se apresenta frente a elas. E ao tecer este comentário, incluo-me inteiramente nele. Acordo perplexo quando o relógio me sugere ou obriga que ocupe um espaço nas ruas que compõem meus trajetos mais comuns. E talvez eu porte, também, um desses rostos anônimos que parecem conduzidos por corpos autômatos e não exprimem nenhuma alegria exuberante. Mas somente uma certa surpresa por terem conseguido compor um personagem convincente pra atuar a tragicomédia do dia.

Acordo tarde, sempre. E nem tenho tanta certeza de que acordo - de fato - todos os dias. Talvez em alguns deles, deixe-me dormindo sob edredons e abraços de calor e aconchego, e só autorize que saia pra rua, uma parte de tudo o que sou.

Cado Selbach.



quarta-feira, 6 de julho de 2011

Para Ismália - de Cado Selbach


PARA ISMÁLIA

O louco da rua onde moro declama poemas de Pessoa
E conta histórias de viagens em navios imaginários
E quando a cidade dorme faz serenata pros mortos
E Pra mãe que o deixara sem qualquer itinerário

Pela vida tão difícil de sua mãe de vida fácil
Fora entregue a qualquer gente que de amar não entendia
De seu pai nunca soubera nem o nome ou paradeiro
Mas jurava ser herói nos seus sonhos que luziam

Não falava de maus-tratos ou do homem que o tocara
Preferia olhar pra lua e as figuras que lá via
Com seus olhos quase cegos de poeira e abandono
E a alma interiorana e tão pura que trazia

E depois que enlouquecera por escolha mais que fado
Dera pra ler poesia em velhos livros que encontrara
Que dizia serem suas em delírios de grandeza
Da grandeza de sua alma... que a vida lhe roubara

Hoje irá subir na torre junto ao sino à meia noite
Pois soubera de Ismália em suas últimas leituras
E pensara em encontrá-la com suas asas de anjo torto
E em afronta a Guimaraes emprestar-lhe asas seguras

Morrerá em voo cego e coração de passarinho
Com seu jeito de menino que jamais ganhara colo
E agora em poesia encontrara sua princesa
Que brilhará em seus olhos logo que chegar ao solo.

(Cado Selbach)

terça-feira, 5 de julho de 2011

Verborrágico - Cado Selbach


VERBORRÁGICO

Sopram em meus ouvidos cansados
Os ventos uivantes de teus verbos
Verborrágicos verbos vomitados do ventre de teus versos

soltos

Escuto-te como quem antevê o trovão pelo relâmpago
E sei que descerão caudalosas tuas palavras magoadas
Pela minha garganta seca que as recebe rascantes
E que espero não se percam entre vísceras e memórias

Sei que dirão de meus defeitos

- agressivas e sarcásticas -

E já não sei se as escuto ou fujo para os meus gritos
Para abafar os zunidos de inconvenientes verdades
Sobre minhas indecências e meu livro de maldades

Que cometo descarado, arrogante - mas calado
Quando assusta-me a raiva de teus olhos flamejantes
E te assusto com minhas tramas de mitos revisitados:

Traições, parricídios, vinganças e duras sagas

E histórias de amores vividos
- Quase sempre interditados -


(Cado Selbach)





segunda-feira, 4 de julho de 2011

"Do amor quase negado" - Cado Selbach



Cícero sairá hoje à tarde para passear com seu pai. São dez horas e ele
já está pronto. Demorou decidindo se vestiria a camisa de seu time, já
que o pai torce para outro. Tem onze anos; mas já se ocupa de gerenciar a
angústia que sente quando imagina poder decepcionar o cara a quem tanto
ama, mas nem sempre entende.

Do outro lado da cidade o pai
acorda atrasado e precisa de dez minutos pra sintonizar com a idéia de
atravessar a cidade para encontrar Cícero. Ama seu filho de um modo que
chega a desconfortá-lo. Não costuma ser fácil pra esse cara administrar
sentimentos que ponham em risco o pragmatismo com que conduz sua vida. E
em função da profusão de sentimentos desordenados e conflitantes que
vêem à tona quando se envolve com seu menino, foge de vez em quando.

São
onze horas. Cícero veste, então, a camisa de seu time. E ensaia um
sorriso que neutralize algum possível mau-humor que isso possa produzir
em seu pai. Guarda no bolso da bermuda, em dobradura amassada, duas
redações elogiadas por sua professora e as lê em voz alta, duas vezes
cada, para encontrar a entonação e dinâmica ideais para mostrá-las ao
voraz leitor que tanto lhe estimulava a escrever.

O Pai começa a
enumerar silenciosamente todas as possibilidades de programas para a
tarde que se aproxima. E deseja estar feliz e disposto para encarar
qualquer uma delas. Seus devaneios os levam desde o jardim botânico, até
uma esposição de arte contemporânea. Mas ainda há alguma sensibilidade e
a decisão de delegar a cícero o direito de escolher a peregrinação do
dia.

Ao meio-dia, cícero anda pela sala e imita gestos que usará
para contar ao pai dos dois gols que fizera no campeonato do último fim
de semana. Já os havia detalhado ao telefone. Mas sem o aparato cênico,
próprio de seu jeito expressivo de gestos eloqüentes. E pensa em
sugerir voltar pra casa só na segunda-feira. E não ao final do domingo,
como sempre faziam.


O pai já está pronto e também circula pela casa em movimentos idênticos
aos do garoto, que tanto parece consigo. E não conseguira se organizar
para terminar um relatório de trabalho que precisaria entregar na segunda.
Pensa em fazê-lo em algum momento em que Cícero estiver "engolido" pelo
computador. Ainda não decidiu se lhe apresentará a nova namorada. Não
exatamente uma "Super Nanny" em sua relação com as crianças que por
descuido, ou falta de opção, convivam algum tempo com ela.

Treze
horas. Agora falta só uma hora para a chegada de seu pai. Aumenta a
excitação e a vontade de que ao vê-lo o tempo congele e jamais se percam
um do outro. A bola de futebol de salão já está sob seu braço esquerdo.
E o olho claro brilha com a intensidade dos melhores encontros. Sua mãe
está na cozinha falando qualquer coisa sobre filtro-solar e a
necessária reposição de duas em duas horas.

O Pai sai de casa com
a ansiedade que sempre lhe acompanha nessas horas e liga o rádio numa
estação qualquer. E num desses eventos que os seguidores de Jung
entenderiam como sincronicidade, ouve Nando Reis cantar: "Dos meus
filhos eu sinto saudade e tenho medo que eles achem que eu não sinto a
falta deles... como eu acho que eles sentem de mim". E chora como se
esperasse o próprio pai em vão... durante longas horas... até constatar
que ele não viria. E tomado por uma emoção com a qual não sabe lidar,
disca o número da casa do filho para lhe falar de um imprevisto
inventado
e transferir a visita para o próximo fim de semana.


Treze horas e quarenta e cinco. O menino discute com a mãe que insiste
em dizer que não é necessário esperar Marcelo no Portão. Aproveita para
desqualificá-lo um pouco, falando de seus habituais atrasos e ocasionais
faltas. O menino diz que, dessa vez, tem certeza de que ele não se
atrasará. O telefone toca... e vê tratar-se de uma ligação do pai. Já
deve ter chegado, pensa. Tomara que não esteja ligando pra dizer que se
atrasará.

O pai, já com o discurso decorado, ouve o alô
entusiasmado do filho e responde num impulso inesperado: "- só um momento filho...
tenho que desligar! mais dois minutinhos ligo de novo". E o choro que
lhe toma e varre todos os salões e quartos secretos de sua alma, resolve
mudar o rumo da história e o faz rediscar para a casa do filho:
"Cícero... o pai só ligou pra dizer que já está chegando. mais cinco
minutinhos tô aí.Bj. Te amo muito... e olha que andei treinando!"

E vivem um de seus
melhores finais de semana. E o amor que sentem um pelo outro encontra
cada vez menos barreiras. E o pai aprende a negociar com seus medos e
limites e jura para si jamais deixá-lo esperando.

Cado Selbach.

domingo, 3 de julho de 2011

"Nas dobras da tarde" De cado Selbach




NAS DOBRAS DA TARDE

O frio das manhãs mareja meus olhos
Meus olhos marujos de praias distantes
Meus olhos cansados do peso de ontem
Mas esperançosos com fatos do agora

O vento lá fora eriça minha pele
Minha pele desenho de minha própria história
Minha pele que é mapa de tantos caminhos

- Contigo, com outro, outros tempos sozinho -

Minha pele rasgada na volta dos olhos
Por tempo implacável cumprindo sua sina
De gravar histórias - na pele - e retinas

E sigo arrastando meus pés pelas ruas
Do jeito que tenho de andar pelo mundo
Olhos bem abertos peito escancarado
Olhando o horizonte assim meio de lado

Pra que não se percam olhares fugazes
Que então desafio com meus olhos fixos
Até que se percam no jogo de luzes
Do dia de inverno e ipês desnudados

E assim vou jogando com todos que vejo
E que não sustentam seus olhos focados
So pra provocar-lhes repulsa ou desejo
Que sempre combinam com aquilo que vejo
E quase que sinto nas dobras da tarde...