quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Feito água

espero que amanheça
para ver teus olhos
para desvendá-los
e beber do verde
que eles derramam
assim feito água

espero que amanheça
pra saudar teus olhos
pra beijar teus olhos
e vê-los no espelho
de meus olhos fundos
meus olhos do mundo
teus olhos mistério
meus olhos etéreos
teus olhos profundos

espero que amanheça
pra que eu veja a vida
dentro dos teus olhos
e o amor que diz
a fala dos teus olhos.

 

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Horas dizem nada (alguns pensamentos sobre o tédio) - Cado Selbach

Horas Dizem Nada (alguns pensamentos sobre o tédio)

Sempre imagino o tédio como se ele tivesse alguma materialidade. Como se fosse meu vizinho do lado. Aquele a quem cumprimentamos quando acordamos razoavelmente dispostos; mas que não se importará com nosso silêncio em dias menos propensos a palavrório. Penso-o como um profissional cujo trabalho não é nem bom nem ruim. Apenas necessário e cotidiano. O tédio não se importa com o cotidiano; mesmo porque se alimenta dele. Nutre-se das pausas entre os momentos de alegria ou tristeza. De gozo ou desespero. É cheio de vazio e não quer dizer coisa alguma. Entedia-se com sua própria e monocórdica voz. Não tem vocação para tragédia. O tédio não se suicida. Suicídio é um tédio; e ao mesmo tempo em que a sucessão de vivências desse estado de alma, entristece... não imprime suficiente vigor ao sujeito para movê-lo a lugar algum. O tédio é uma valsa tristemente tocada num salão para terceira idade. Mas um salão onde não haja lirismo ou poesia. Só a insistência em parar o tempo. O tédio brinca com o tempo... rouba-lhe a sua própria temporalidade. Insere-lhe um prefixo de negação e torna tudo atemporal. O tédio é brisa leve. Mas tão leve que não faz mover a folha da árvore e não provoca arrepio. Arrepiar-se requer o banimento do tédio. O tédio nasceu num domingo à tarde, tendo o mal humor como parteira. Sabe-se que é contagioso; há quem diga que mais que a alegria. Pode ser uma couraça eficaz contra a tristeza ou depressão. Essas são mais expressivas e cheias de histórias pra contar. O tédio faz silêncio. Nunca faz alarde de si. O tédio jamais escreverá um texto brilhante. Isso contrariaria sua essência melancólica. Mas esta, sua irmã, é mais charmosa. Afinados com ela, muito já se produziu em todos os domínios da arte. O tédio, distraído com sua narcisista necessidade de nutrir-se de si mesmo, nem sequer voltou seus olhos pra obra da melancolia. O tédio despe as músicas de sua capacidade de produzir estados de enlevo e sublimação plena. O tédio não precisa sublimar nada. O tédio não é!
(Cado Selbach)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

SÓ - Cado Selbach



Arrasta o corpo velho
Na velha avenida dos foliões

... Seus passos de hoje
O levam sem pressa
Pra lugar algum
Ou pra qualquer lugar

Qualquer vida vive
Após a derrocada
Da vida que escolhera

Resta-lhe apoiar-se
No andador das lembranças
Fragmentadas, difusas
Emoções encaixotadas

- já etéreas -

Do que antes concretara-lhe
A existência!

Restam-lhe netos invisíveis
E mensagens eletrônicas
Pro velho cibernético

Um livro de rostos jovens.
E o seu! mapa ou tabuleiro
Não de baianas malemolentes
Mas de passos rente aos pés
Rente ao chão que inda lhe resta

Velho abandonado a sua sorte
vira as costas todo dia para a morte
que espia da janela do lavabo
Nos gritos das crianças excitadas

E a cada grito envelhece
E a cada grito entristece
Seu rosto mapa e estrada

Sua expressão de quase medo
Seu tesão por quase nada
Além da lembrança sorridente
Da cinta liga de mulher da vida
Da vida que já faz tempo

Muito tempo

Lhe bastara

sábado, 17 de setembro de 2011

Toda maré

TODA MARÉ

O fugidio poema quase me escapa de novo
Quase que foge pra rua... quase que desce as escadas

Mas minha vontade rascante de traduzir-me em palavras
Conseguiu capturá-lo pra que eu pudesse dizer-lhe:


Ele não quer dizer nada... Ele só quer ser poema
Ele abusa das palavras e as organiza... confuso
Pretendendo - ora vejam - que te toquem e comovam
te inquietem e te movam pros teus lugares de sempre


Ou que ao menos te inquietem, levando teu pensamento
Pros seus abismos sagrados, ou teus vulgares segredos

Aquilo que preferires


Meu poema fala de meus medos que também são teus


Tarde ou cedo


Ele é a pele do corpo pulsante que leva minha alma


Deambulante


Pra todos lugares em que já estive... 
pra todos os lares
todos os bares... pra todos os mares.

todas as marés...

toda tempestade no oceano onírico
De todas imagens que habitam teu peito


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Outra escrita

OUTRA ESCRITA

Já não percorro velhos caminhos
E nem sequer olho pra trás

... Tenho em meus olhos
O espelho das coisas futuras

- Notícias do que está por vir -

E um melancólico vazio
Ante ao que não mais será

Sairei para rua hoje
derramando meu jarro de lembranças
no córrego da indiferença e do desdém

Não seguirei o percurso do que deixei pra trás
E farei pouco caso de tudo que já foi

Nascerão de mim sementes de vir a ser...
E só então serei tudo o que o outro

- do passado -

Até hoje me negou

Reescreverei minha história, então
E nenhuma página dirá dos meus antigos vetos

E nem da angústia de hoje.

Nascerei de novo... nesta noite!

E prometo levar-te comigo...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Diálogo do tempo - Cado Selbach

Diálogo do tempo

Amarro meus pés cansados
À bola de ferro do tempo
E o arrasto na alameda
Das dores agudizadas
E no beco sem saída
De minhas recorrentes perdas

Movimento-me autômato
Em círculos de desespero
E cavo o chão de meus mortos
Em ato descompensado
De vida sendo insuflada
Aquilo que já não era

Quando concluo que a ceifa
De Cronos enfurecido
Aborta as vãs existências
Qual adaga enferrujada
No peito hoje rasgado
De um eu quase inocente
Mas já um tanto cansado
De abruptas despedidas

E talvez já seja tempo
De colher delicadezas
No meu quarto de lembranças
Pra que me sirvam de antídoto
Pro que em mim sempre desiste
De filtrar a enxurrada
Dos suplícios de saudades
De onipresentes ausências
A preencherem espaços
De memórias que esvanecem
Mas redesenham os sentidos
Atribuidos a tudo
Que nos centra e nos reporta
Aquilo que abandonamos

Ou nos tenha abandonado...

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Eu e as horas - Cado Selbach

"Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas temos muito tempo
Temos todo o tempo do mundo..."
(Renato Russo)

Eu e as horas

Há dias em que as horas parecem correr mais do que nós. Em que nos sentimos paralisados diante dos ponteiros do relógio anunciando os diferentes períodos do dia. Sempre achei engraçado isso de sermos tão condicionados a obedecer a ceifa de Cronos. Nem sempre o corpo está pronto a acatar os mandatos que surgem a cada volta dos ponteiros, dizendo-nos para que serve cada hora. Determinando-nos o que temos de estar fazendo a cada instante para nos comportarmos como pessoas adaptadas ao universo particular a que pertencem.

Sou feito de muitos universos. E nem todos conhecem limites. E alguns que sabem que eles existem, porventura se rebelam - ou adoecem. A vida que nos habita nem sempre cabe na vida que nos determinam. Ou seremos nós que a determinamos? Serão sempre nossas as escolhas?

Vivemos continuamente ocupados da tarefa de não perder tempo. Mas o que será exatamente perdê-lo?

Uma hora vazia onde a mente passeia por diferentes paragens e simplesmente contempla a própria vida é uma hora perdida? Esta hora em que aproveito uma brecha de meu dia pra pensar sobre as questões que abordo aqui, será tempo perdido ou jogado fora? A hora em que o relógio nos arranca da cama sem nenhuma cerimônia pra que nos organizemos com as atribuições do "dia útil" é mais importante (ou digna, em termos morais) do que as vividas no ócio?

Será o tempo "um dos Deuses mais lindos", parafraseando Caetano Veloso em sua música "terra"? Somos senhores de nosso próprio tempo?

Há aqueles dentre nós que simplesmente seguem a ordem do dia... organizada e metodicamente. E há aqueles cujo tempo interno normalmente duela com o tempo cronológico; os que sentem que a vida é curta e que nos cabe imprimir a ela um ritmo orgânico, natural e espontâneo. Não poder resolver essa equação tem um efeito devastador sobre o homem, expropriando-o de sua própria essência e o robotizando na obediência à cinza das horas. Precisamos todos resolvê-la, portanto, pra nos tornarmos protagonistas de nossas próprias histórias. Só quando o tempo não nos aprisiona é que podemos criar e ouvir o ritmo que pulsa em nosso interior. Venho trabalhando nisto.


Enfim... não gosto de relógios. Gosto do tempo ditado pelo nosso próprio corpo e colorido pelas melhores intenções de nossa alma. O tempo enjaulado nos empobrece. O tempo liberto nos engrandece. Mas como não vivemos em um idílico sonho em que simplesmente nos podemos deixar conduzir pelo andar suave da vida, precisamos aprender a viver com alegria aquilo que temos de viver, como no conceito de livre arbítrio, para o criador da psicologia profunda, Carl Gustav Jung. Ao discutir este tema ele desdobra a máxima de que o verdadeiro livre arbítrio está na possibilidade de podermos escolher como viver aquilo que obrigatoriamente temos de viver.

O quão satisfatórios conseguimos ser neste intento, e o que viemos fazendo para gerenciar com competência este domínio de nossa vida é o tema deste texto, que subtraiu 20 minutos de meu dia.

Nesta hora não espero pra ver a resposta da vida e afirmo: nunca é perdido o tempo que usamos para buscarmos nos entender.


sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Passarando

Passarando

derramarei palavras vida afora
para teus ouvidos generosos
que escutarão meus verbos afetados
...como se ouvissem coro dos arcanjos

e enquanto ainda escrever poemas
perseguirei aquele que te alcance
e finalmente diga do que houve
e que talvez nunca tenhas sabido

e no entredito das palavras tortas
trarei notícias do amor errado
e assim tão certo pro meu eu quebrado
de coração de samba sincopado
e alma arredia de bicho selvagem

- por algumas horas enjaulado -

pro teu deleite de homem assustado
e o olhar perplexo pela inconsciência

...

da vida espero só libertações!

de amarras já me ponho farto...
daqui pra frente vôo leve e solto

- E talvez pouse sobre o teu gramado -

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Sinfonia - cado selbach

SINFONIA

O oceano das palavras
Que costuro em meus poemas
Compondo tênue tecido
...De lirismo anarquizado
é o mar dos entardeceres
Que ainda estão por vir

Mar de um verde desmaiado
Após o sol exilado
Mergulhar em exaustão
Na úmida cavidade
Da luxuriosa montanha
Que o abriga noite adentro
Sob a gótica sinfônica
De alguns lobos desgarrados
Em uivos em dó menor
Menor do que o dó que sinto

O dó ante tua recusa
A salvar-me de mim mesmo
Sorvendo o que ainda resta
Deu um eu feito metade
Com metade já sugada
Por histórias do passado
Por amores mal passados
E rancor reeditado
Pela tal reincidência
Dos afetos escondidos

E meu dó ainda espera
Que um dia caias em si
Quem sabe em dia de sol
Do sol nascido de lá
Onde escreves tuas notas
Tão precisas - tão seguras

E componhas canção tema
De minha ópera barroca
Com rococós de tristeza
E melismas de esperança
De dias eternizados
Em partituras sagradas
Pra entoarmos em uníssono
Melodia das esferas

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Sobre Valsinha, Chico Buarque e Mônica Salmaso... Ou... Da canção que salvou o dia - Cado Selbach



Hoje vivi uma experiência bastante simples mas amplamente reveladora de certos aspectos de minha personalidade e dos mais sinceros valores que trago comigo. Na verdade, é uma experiência subjetiva, que provavelmente no produza nenhum impacto sobre a maioria das pessoas. Trata-se de uma dessas ocasiões em que uma canção transforma um dia, expondo diante de nós uma aquarela de possibilidades para nos desenredarmos da toxicidade de nossos pensamentos viciosos.

Estava eu procurando alienar-me do mundo lá fora e seus sons ofensivamente urbanos, ouvindo uma playlist de canções especiais (dessas que podem transformar um dia...). E eis que escuto os primeiros acordes de "Valsinha" de autoria de Chico Buarque. No caso em específico, trata-se de uma sensível e previsivelmente impecável interpretação de Mônica Salmaso.

Fecho os olhos e me entrego à experiência de visualizar cada cena, na intenção de tornar a música uma tela de imagens em movimento, na qual desejava poder mergulhar. E é então que a escuto cantar sobre a resolução de um homem em imprimir lirismo ao seu cotidiano, pincelando seu dia com novas matizes. Dentre outras ações e intenções, opta por, neste dia, não maldizer a vida como costumeiramente fazia. E então conduz a mulher que o esperava no fim de tarde (é este, para mim, o tempo da circunstância relatada na música) até uma praça e a convida pra dançar. Subitamente. Enterneço-me já neste primeiro ato e danço ao redor deles como para mimetizar-me a esta atmosfera de delicadeza e poesia. a dança, cheia de sacralidade, desperta toda a vizinhança e a cidade se ilumina. Neste momento já estou submerso; transposto a um mundo paralelo onde podemos optar sempre que nos propusermos a isto pela quebra do ritmo alucinante em que vivemos e pela entrega despretensiosa ao que temos de melhor em nós: nossa capacidade de amar e organizar as próprias ações em torno deste amor. Vejo-me num "tempo-espaço", onde o amor se revela como força propulsora de um ato simultaneamente libertário e inusitado; de um outro jeito de nos movimentarmos frente aos nossos sentimentos e às coisas pelas quais nos sentimos verdadeiramente afetados. Pude sentir a textura e o gosto dos beijos loucos no qual resultou o clima protagonizado pelos dançarinos e uma parte de mim... silenciosa... entendeu exatamente o teor dos gritos roucos "como não se ouvia mais" e compartilhou o êxtase dos amantes.

E mesmo com a noite avançando, as imagens continuam passando em minha mente como um desses filmes antigos em que o amor é tratado sem o tom blasé de grande parte das produções contemporâneas.

Fui ternamente embalado por esta canção hoje à tarde. Agradeço ao Chico que, parafraseando Cássia Eller no seu cd "acústico MTV" é meu verdadeiro Pai. E à garganta esplandecida de Mônica Salmaso, que certamente também se deixou conduzir por sensações inadjetiváveis pra interpretar essa música capturando e imprimindo o tom onírico em que ela acontece.