segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Exercício de escrita (ou sobre a imperiosa necessidade de escrever) - Cado Selbach

Não sei o que escrever. Pergunto-me, então, sobre o porquê dessa
imperiosa sensação de que preciso fazê-lo. E quase não resisto a
evasivas e respostas adocicadas. Penso em minha alma inquieta e sua
angustiante necessidade de se expressar. Penso que é segunda feira e que
preciso fôlego pra organizar meu dia antes que as pessoas comecem a
correr pela rua lotando restaurantes a quilo. Penso em tudo o que
preciso fazer à tarde e percebo que preferiria continuar escrevendo -
sem parar - ao longo do dia. Que escrever é vício e sacerdócio. Uma
idEia, então, toma-me em sobressalto: Quem sabe corro à estante, abro o
livro que estou lendo no momento e leio as dez primeiras palavras do
segundo parágrafo da página 64? Escolha aleatória, evidentemente.
Resolvo seguir meu ímpeto; e, em segundos, já o tenho em meu colo: "O
ENCANTAMENTO DE LILY DAHL" da escritora americana Siri Hustvedt. E com
voracidade entusiasmada, abro a página 64, corro até o parágrafo já
mencionado... e lá estão as dez palavras semente:

LILY FITOU
MABEL DE VOLTA PARA VER SE O COMENTÁRIO

E penso em enganá-los,
procurando algum parágrafo que inicie com algo mais revelador; alguma
sentença mais contundente e conclusiva. Afinal, comecei a ler o livro
ontem à noite... e não avancei além da quarta página. Não posso me
apoiar em impressões sobre os personagens reais. Então, entrego-me ao
delírio e leio a frase novamente, tentando capturar ali algum sentido
real ou inventado, torcendo pra que me propulsione a algum lugar. Penso
que Lily (seja ela quem fôr) importa-se com a reação de Mabel a seu
comentário. Imagino que se preocupa com o impacto de suas próprias
palavras... e travo. E penso no quão invasivo costumo ser com esse meu
jeito de dizer tudo. E que nem sempre fito as pessoas para averiguar as
reações que meus ditos produzem. E é então que me lembro-me de uma
discussão recente, no messenger com uma amiga que me conhece o suficiente pra não temer a esfinge
esfomeada sempre à espreita em meus olhos. Disse-lhe algumas palavras
duras e não a fitei pra concluir o impacto exercido por elas. Ou o
estrago que pudessem ter causado. simplesmente disse. E provavelmente
tenha criado um profundo abismo entre nós dois. Volto a pensar em Lily e
invento que Mabel é alguém muito importante em sua história. Ergo-me da
cadeira em que estou sentando e busco um café. Já não sei o caminho a
seguir e quase me incomodo em pensar que posso estar escrevendo pra
ninguém. Não há certeza alguma de teu interesse pelas minhas
elocubrações confusas a respeito dessas mulheres (ou serão crianças?). E
nem sobre meus desentendimentos prosaicos com amigos dos quais vocês nada
sabem. Mas sou surpreendido pelo pensamento de que muitos de nós
fitaremos pessoas ao longo do dia, atrás de tentar entender o impacto de
nossos atos sobre elas. E muito do que veremos em seus olhos serão
meras projeções de nossas fantasias. idéias inconsistentes e imprecisas,
amarradas a nossos próprios preconceitos e percepções subjetivas. Volto
a pensar no diálogo virtual com minha amiga e tenho vontade de
telefonar para ela e tentar descobrir o impacto que posso ter causado
com meus comentários pontiagudos, naquela manhã de sábado com humor de
finados. Tenho vontade de fitá-la pra deduzir qualquer coisa. E me pego
sorrindo ante à ideia de um chopp de final de tarde em companhia dessa
amiga, onde já terei impresso esse escrito de constrangedora banalidade e
sublime utilidade.

E é então que vasculho meu cérebro com a agitação de mulheres nervosas
em dias de faxina, arrastando móveis pela casa toda e abrindo janelas
cheias de sol pra acordar qualquer pessoa que possa atrapalhar o ímpeto
furioso de limpar, limpar, limpar, limpar, limpar... e me ponho a
filosofar sobre o fato de que qualquer junção de dez palavras contém um
mundo de possibilidades. contém fragmentos da história de cada um de
nós; e pode nos conduzir a qualquer mundo que desejemos e ganhar
contornos surpreendentes, tecendo - inclusive - finais felizes pra
desentendimentos banais. Decido terminar rapidamente esse escrito e
corro ao telefone pra convidar a amiga que soterrei de palavras no
sábado pela manhã, prum chopp de final de tarde. E o dia ganha um novo
significado, na mesma hora em que o relógio avisa que os restaurantes a
quilo já transbordam de pessoas à espera da sexta-feira. E que preciso
correr pra um deles.

Um comentário:

zoraide gesteira disse...

Caramba, me vi nesse texto, tentando hoje entender a reação de uma amiga a um olhar severo que dei a ela, por causa de uma besteira, nós que sempre rimos muito juntas... e fiquei sem respostas também... ah eu curto muito seus escritos, eles falam comigo.